Reflexões sobre o primeiro Natal sem meu pai

Reflexões sobre o primeiro Natal sem meu pai

Reflexões sobre o primeiro Natal sem meu pai

Hoje faz 24 dias que o meu pai morreu. Será o primeiro ano sem ele no meu Natal.
Eu lembro muito bem como foi o Natal com ele em 2024. Com o passar do tempo, ele foi ficando recluso, um cara pouco social, absolutamente difícil de agradar com presente. Fosse Dia dos Pais, aniversário ou Natal.
Não saía pra comer, portanto eu não poderia levar ele a um restaurante ou coisa assim. Não curtia nada muito sofisticado. Então eu levava panetone, que era o que ele gostava.
Fora isso, eu já tentei dar TV, uma máquina pra automatizar o portão dele, uma cafeteira, um box de banheiro, enfim... Várias coisas que pudessem ser úteis no dia a dia.
O presente que eu dei que ele mais pirou veio de Minas Gerais. Fui fazer um show lá e, numa dessas feiras de artesanato, encontrei um pedaço de madeira dividido em três partes. Uma era fixa e as outras duas funcionavam como duas “portas”.
Quando você abria, havia a imagem de Jesus dentro. Quando ele recebeu isso, foi a primeira, e talvez a única, que eu o vi realmente emocionado com um presente.
No último 24 de dezembro, eu fui até Atibaia, minha cidade natal. Lá eu encontrei ele meio triste e deprimido. Estava meio difícil puxar assunto.
No momento depois de um certo silêncio, ele disse: “Estou com saudades do meu pai”.
O pai dele, meu vô Dito, morreu em 1997. Nasceu em 1900. Viveu bem e bastante. Morava na parte baixa de Atibaia, enquanto a nossa casa ficava na parte alta, no centro.
Todos os dias meu avô dava uma passada lá pra ver a gente. Ia andando. E talvez por isso tenha vivido tanto.
Mina irmã e eu estivemos bastante tempo nos últimos momentos dele.
Num dia, estava chamando delirando e chamando a esposa dele que tinha morrido no dia 12 de agosto de 1978, dez dias antes de eu nascer. Sempre ouvi falar muito bem dela.
No outro dia, estava melhor. Ficou feliz em me ver, abriu aquele sorriso fofo dele de velho de 97 anos. No dia seguinte, ele morreu.
Meu pai fez questão de que o pai dele fosse sepultado junto com a família, numa sepultura da qual meu pai era responsável.
Pra isso, uma das ossadas precisava ser retirada, e foi a de um irmão dele, o Zezinho. Alcóolatra, morreu afogado por estar bêbado nas margens do Rio Atibaia.
“Nossa, Oscar... que tétrico. Por que você tá contando isso?”
Calma, vai fazer sentido.
Na exumação, estávamos meu primo Russo, minha irmã e eu. Você pode ficar curioso com o fato de um menino de 19 anos querer ir ver o tio ser exumado. Eu também fico.
Instintivamente, eu quis ver de perto como era a morte, já que ela tinha se apresentado na família tão de perto pela primeira vez pra mim.
Não foi nada agradável. Ver o esqueleto do meu tio sendo retirado. O clima obviamente estava tenso. Eu estava impressionado com aquela imagem do coveiro retirando o crânio do meu tio.
Neste momento, o Russo solta: “Quanta pinga já desceu por essa goela aí, hein?” Nós todos rimos, inclusive os coveiros. Ali eu entendi, pela primeira vez de forma muito clara, que o humor serve justamente pra aliviar dores já visitadas. Aquela piada aliviou o clima de todos ali.
Durante o velório, eu fiquei olhando pra ele e pensando que eu não tinha dado conta, de forma racional, do quanto eu adorava meu avô.
Ouvir as histórias dele da roça. Era um cara muito fraternal e atencioso. Desses velhos que dão vontade de ficar junto, beijar e ficar abraçado.
Talvez seja por isso que, 27 anos depois durante aquela conversa no Natal, meu pai tenha dito que estava com saudades dele.
Aquilo me deixou triste porque eu entendi, nas entrelinhas, que o meu pai talvez já estivesse cansado de estar aqui.
Eu, automaticamente fiz o que se faz num momento em que alguém demonstra uma tristeza assim: “Que é isso, pai? Calma... Tem muita coisa ainda pra acontecer. Vai chegar um momento em que você vai poder ver ele de novo, mas calma”
Ele não disse nada. Estava deitado e olhou pro teto. Puts, aquilo me apertou o coração e a conversa meio que acabou ali. Nenhum papo mais engatava.
Percebi que ele estava com sono e perguntei se ele queria dormir. Ele disse que sim e eu voltei pra São Paulo. Dirigi pela Fernão Dias com a garganta apertada.
Dezessete dias depois, ele estava dando entrada pela primeira vez das nove no total, na UTI.
Muitas coisas aconteceram neste ano no hospital. E o que eu quero destacar é que ele me falou algumas vezes durante o ano que queria morrer.
Eu reagia meio que automaticamente como eu já mencionei. Tentava confortar, desviar o assunto, não deixar aquilo criar forma. Eu entendi a tempo que isso era mais sobre mim do que sobre ele.
Num determinado dia, no jantar, logo depois de comer, ele tocou no assunto mais uma vez. E ali eu me dei conta de que eu precisava parar de fugir do que ele estava tentando me dizer. E o diálogo foi mais ou menos esse:
- Acho que eu quero morrer Junior. Já tá chegando na minha hora.
Pausei de arrumar a mesa e, depois de um tempo breve, perguntei.
- É mesmo, pai? Por que?
- Ah, eu acho que eu já cumpri a minha missão aqui. Já cuidei de você, da sua irmã, de todo mundo.
- Isso é verdade, pai...
- É... E eu já conversei com Deus também. Já troquei essa ideia com ele. Acho que tá tudo bem.
- Ah, pai... Você realmente cumpriu a sua missão. Você fez o melhor que pôde. Se você está em paz e tranquilo com essa decisão, isso é o mais importante. Não adianta, também, ficar vivendo por viver, né?
E ele:
- É... Passa a gelatina pra mim!
Eu ri da praticidade dele. E acho que era isso mesmo. Algo prático. Ele provavelmente tinha decidido aquilo desde o Natal que eu mencionei.
Coincidência ou não, ele não falou mais nesse assunto até acontecer o que ele queria.
O motivo pelo qual eu dei espaço pra conversa dele não foi alcançado naquele momento. Foi dias antes.
Eu cheguei na conclusão de que ele precisava que eu ouvisse e acolhesse o que ele precisava dizer, não de alguém tentando convencer ele a ficar.
O fato de eu ficar dizendo o contrário do que ele sentia fazia com que ele não ficasse em paz com a própria decisão.
Eu estava projetando nele o que eu queria: que continuasse vivo. Mas... e ele? Era justo eu responder de forma tão superficial só pra satisfazer a minha vontade?
Meu pai foi arrimo de família. Cuidou de muita gente. Ajudou muita gente. E eu percebi que 2025 foi a primeira vez que estavam cuidando dele: as enfermeiras, os médicos, o pessoal da casa de repouso, os amigos, minhas primas, minha irmã e eu. Ele se permitiu ser cuidado. Eu tenho certeza de que ele gostou disso.
Ele estava perto de morrer no fim de 2024. Estava triste e deprimido. Tanta gente dando atenção pra ele fez com que ele quisesse viver mais um pouco, recebendo tanto amor. E ele foi muito amado nesse fim.
Apesar de ser algo absolutamente triste pra mim, eu fico contente de ter entendido a tempo que eu não precisava lutar contra a partida dele, nem colocar mais peso, culpa ou medo nesse momento.
A morte carrega algo que a gente rejeita simplesmente por ser triste. E eu talvez tenha chegado nessa conclusão porque eu encarei a morte quando aconteceu com o meu avô e naquele dia da exumação no cemitério.
E, por essas ironias absurdas do destino, eu não consegui colocar o corpo do meu pai na sepultura da família. A mesma sepultura pela qual ele era responsável e fez questão de unir meu avô com a família.
Não consegui por uma razão burocrática. Um corpo deve ficar três anos completos numa sepultura antes de ser exumado pra que outra pessoa possa ser colocada no lugar.
O irmão dele, o tio Gentil, morreu no dia 15 de dezembro de 2022. Ou seja: 2 anos, 11 meses, e 15 dias antes. Mais 15 dias, eu poderia ter colocado ele ali.
Me senti frustrado por meu pai estar enterrado em outra sepultura, em outro cemitério, longe fisicamente da família.
A física diz que nada simplesmente desaparece, tudo se transforma. Este é o meu primeiro Natal sem o meu pai. Talvez seja o primeiro dele, em muitos anos, com o pai dele.
E sabe o que é melhor? Eles seriam convidados pra festa do aniversariante.
Bom Natal pra você!
PS: Eu escrevi uma carta de despedida pra ele e publiquei aqui no Portal IG . Talvez você se interesse em ler também!