Quando aprendemos a aplaudir crimes

Quando aprendemos a aplaudir crimes

Quando aprendemos a aplaudir crimes?

Como séries, redes sociais e escândalos transformaram condenados em personagens rentáveis, enquanto vítimas são apagadas da memória coletiva.

A pergunta parece meio bizarra, mas basta rolar o feed para perceber que a resposta já está diante dos olhos: criminosos viraram personagens, manchetes se transformaram em curiosidades pop e o público consome notoriedade como se fosse talento.

O escândalo deixou de ser vergonha e passou a ser espetáculo, e a gente, plateia digital, aprendeu a bater palmas.

Guy Debord já falava em “A Sociedade do Espetáculo”: não importa o mérito, importa o que gera atenção. Hoje, o algoritmo é o novo diretor desse espetáculo.

Elize Matsunaga e seu fã

Nessas roladas de feed do Instagram que a gente dá, encontrei uma notícia sobre Elize Matsunaga. Condenada pelo assassinato e esquartejamento do marido, hoje em regime aberto, ela foi abordada por um fã na rua.

A manchete não foi o crime nem a vítima dela. Aliás, você lembra o nome dele? Provavelmente não. A vítima desaparece da narrativa, reduzindo-se a “marido da Elize” ou “o dono da Yoki”.

Ela aceitou tirar foto e fez apenas uma exigência: nada de vídeo. E foi esse o título da notícia. Não é irrelevante, é sintomático.

Existe público interessado em registrar esse encontro como quem cruza com uma atriz ou cantora. E existe imprensa disposta a tratar o episódio como curiosidade pop. O crime vira um detalhe e a notoriedade ganha status de produto.

Suzane von Richthofen e seus 100 mil seguidores

Pois é, essa outra notícia também me chamou atenção, sobretudo porque ela agradeceu o apoio recebido. A narrativa dominante não gira mais em torno do assassinato dos pais, mas da vida prática, do empreendedorismo artesanal, da rotina “reconstruída”.

Por um lado, há um legítimo interesse público em saber como pessoas que cometeram crimes graves se reintegram à sociedade, trabalham e vivem sua pena. Por outro, existe o risco de transformar essas figuras em celebridades ou ícones de curiosidade, incentivando comportamentos que banalizam violência ou fraude.

Enquanto isso, quantos inocentes presos injustamente recebem esse mesmo espaço de ressocialização? Quase nenhum. A lógica midiática privilegia o escândalo e não a justiça, apesar de a gente clamar por ela.

Tremembé: nenhuma engrenagem cultural gira sozinha

Aqui entra um elemento-chave que ajuda a explicar esse fenômeno: a série Tremembé.

O “presídio dos famosos” já era uma construção midiática antes mesmo da série, que apenas cristalizou e ampliou esse imaginário. A produção transformou esse local em produto audiovisual.

Colocando essas pessoas como protagonistas, a série humaniza personagens inspirados em condenados por crimes brutais e convida o público a acompanhar seus conflitos, fragilidades, afetos e dilemas morais. Tudo legítimo do ponto de vista dramático.

Mas com um efeito colateral claro: o criminoso deixa de ser apenas autor de um ato e passa a ser protagonista de uma narrativa.

E aí a empatia é reorganizada: o público se conecta ao personagem, não ao crime, e muito pouco à vítima.

Nego Di e o golpe na autoestima dos artistas

Chegamos ao caso mais desconcertante da sequência de notícias que chegaram no meu feed viciado.

Nego Di, humorista e influenciador, foi acusado e condenado por estelionato. Em 2024, o STJ concedeu liberdade provisória. Em dezembro de 2025, ele lotou um teatro com uma apresentação de humor. Pessoas pagaram ingresso para vê-lo no palco.

Fico na dúvida se para essa plateia estava claro que consumiram não só humor, mas a narrativa de um “personagem real” com boletim de ocorrência agregado.

Enquanto artistas honestos lutam por anos para conquistar público, um réu por fraude consegue plateia cheia. Não apesar do crime, mas com ele incorporado ao personagem. Afinal, o nome do show é Diário de um ex-detento.

Aqui o problema deixa de ser jurídico e passa a ser cultural: o escândalo gera valor. O palco não premia talento, premia notoriedade. E a internet ajuda porque o algoritmo não distingue mérito de infâmia, distingue engajamento.

O plot twist irônico desse episódio é que, logo depois dessa apresentação lotada, ele virou réu em um novo processo por estelionato, acusado de aplicar golpes em 64 pessoas.

Seguidores e a empolgação por qualquer personagem

Talvez o problema não esteja apenas em quem sobe ao palco. Talvez esteja em quem compra o ingresso e no ambiente cultural que transforma qualquer desvio em espetáculo. Até porque, provavelmente, ninguém que estava naquela plateia fazia parte do hall de pessoas que sofrem golpe dele.

Assim como o rapaz que fez a foto com a Matsunaga não foi diretamente envolvido na morte do marido.

Assim como nenhum dos 100 mil seguidores da Suzane foi diretamente atingido pela morte dos pais dela.

Elize, Suzane e Nego Di são menos exceções e mais sintomas. Sintomas de um país onde a fama deixou de ser consequência e passou a ser prêmio. Mesmo quando o preço é pago por outras pessoas.

PS: O nome do marido dela é Marcos Matsunaga.