Uso de múmias egípcias como remédio na Europa medieval
13/09/2025, 11:33:42O uso de múmias na medicina medieval
Durante séculos, a medicina europeia recorreu a remédios que hoje nos chocam: um deles foi a chamada mumia, um pó ou unguento produzido a partir de corpos mumificados egípcios ou de substâncias resinosas confundidas com elas.
Entre aproximadamente os séculos 12 e 17, e com vestígios de uso até além desse período, a mumia circulou por boticas e cortes reais como um remédio versátil, indicado para tudo, de fraturas a hemorragias e convulsões. A origem desse costume mistura traduções equivocadas, tradição médica árabe e uma demanda crescente por “medicamentos exóticos” na Europa renascentista.
O significado da palavra e suas origens
A história começa com uma palavra: mūmiyā (árabe), que designava originalmente um tipo de betume (mistura líquida de alta viscosidade, cor escura e é facilmente inflamável) ou asfalto medicinal, um exsudato natural usado em partes do Oriente Médio para tratar feridas e fraturas.
Traduções latinas da medicina árabe, feitas a partir do século 12, confundiram esse betume com o produto usado na mumificação egípcia. Por consequência semântica e prática, o termo passou a abranger tanto o betume natural quanto os restos embalsamados encontrados em sepulturas egípcias, e os europeus começaram a buscar fontes de “mumia” nos túmulos do Nilo.
A variedade desse comércio
Na prática, o que se vendia nas apotecas (estabelecimento para venda de medicamentos) variava muito. Em alguns casos tratava-se de verdadeiros exsudatos bituminosos; em muitos outros, era pó obtido de múmias (fragmentos de carapaças resinosas, bandagens carbonizadas e até restos humanos pulverizados) vendidos como panaceia (remédio universal para todos os males físicos e morais).
A reputação do produto era elevada: médicos e cirurgiões da época afirmavam que mumia “estancava sangramentos” e “favorecia a consolidação de fraturas”. Reis e membros da nobreza chegaram a usar preparados à base de múmia como remédio e tônico preventivo. Essa demanda incentivou um comércio lucrativo que, por sua vez, estimulou pilhagens de tumbas e a falsificação do produto.
O aumento da demanda e fraudes
As fontes médicas medievais e renascentistas ajudam a explicar por que isso aconteceu. Autores árabes como Razi e o corpus médico helenístico classificavam o betume entre as substâncias com propriedades medicinais.
Quando os textos foram traduzidos para o latim, leitores europeus interpretaram referências a um “mūmiyā” bituminoso como referências a corpos embalsamados. Médicos e cirurgiões europeus, influenciados por autoridades clássicas e por uma cultura científica ainda ligada às propriedades “simpatéticas” das substâncias, aceitaram a ideia de que aquilo que preservava o corpo poderia também “preservar” a vida do doente ao ser administrado.
A reação da sociedade e o fim do uso
O comércio e a fraude cresciam em paralelo. Com o aumento da procura, mercadores e boticários passaram a misturar restos humanos não-mumificados, excrementos de animais, resinas e pigmentos para fabricar uma mumia mais barata (e nem sempre rotulada honestamente).
Ao mesmo tempo, leis e proibições surgiram: autoridades egípcias tentaram em diferentes momentos restringir a exportação de restos mumificados, tanto para proteger o patrimônio funerário quanto para controlar o tráfico. Mesmo assim, relatos contemporâneos descrevem mercados europeus cheios de barris e frascos de “pó de múmia” à venda.
A ciência e a ética
A partir do século 16 começaram a aparecer críticas eruditas e ceticismo científico. Com o nascimento do método empírico e de investigações anatômicas mais sistemáticas, estudiosos passaram a questionar a eficácia da mumia e a origem real do seu suposto princípio curativo.
A distinção entre o betume natural (possivelmente com algum efeito tópico) e os restos humanos pulverizados ficou mais clara: não havia justificativa racional para o consumo contínuo de matéria humana como panaceia.
Apesar disso, o uso e o comércio persistiram por algum tempo: práticas culturais e a inércia do mercado farmacêutico mantiveram o produto nas prateleiras até que o consenso médico se consolidasse contra ele.
O legado e lições da história
A história tem capítulos particularmente grotescos. Existem receitas detalhadas de farmacologistas renascentistas e alquimistas descrevendo como preparar tinturas e “tônicos” à base de mumia: o processo podia envolver maceração em vinho, misturas com mirra e aloés, e fermentações complexas.
Paradoxalmente, enquanto a medicina se afastava da prática, a indústria artística absorveu a matéria-prima: no século 19, o pigmento chamado “mummy brown” (marrom de múmia) era usado por pintores, até que, finalmente, conservadores e artistas passaram a condenar o uso de restos humanos por razões éticas e estéticas.
O fim da mumia como medicamento foi gradual e impulsionado tanto por avanços científicos quanto por mudanças culturais. No curso dos séculos 17 e 18, o rigor científico, as novas terapêuticas e a crítica humanista corroeram a legitimidade do remédio.
Registros médicos e trabalhos de historiadores da medicina mostram que, embora uso marginal e práticas fraudulentas tenham persistido, a prescrição de pó de mumia deixou de ser prática médica aceita.
Hoje, os relatos sobre esse fenômeno servem como alerta histórico: mostram como equívocos de tradução, desejo por remédios milagrosos e interesses comerciais podem produzir práticas médicas perigosas e eticamente problemáticas.