Recreio sem celulares: Alunos redescobrem a interação social
18/02/2025, 06:37:49Recreio sem celulares: Alunos redescobrem a interação social
SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) - Mesas de pingue-pongue, pebolim, espaço de leitura e tabuleiros são apenas algumas das atrações disponíveis entre o refeitório e a área de convivência da Escola Estadual Olga Cury, em Santos (SP). Com a restrição do uso de celulares, esses atrativos ganharam destaque no retorno às aulas, no início deste mês. Nos primeiros dias sem os aparelhos pessoais, os alunos têm demonstrado maior interação social e redescoberto livros e brincadeiras.
"Achei que teria resistência, mas, pelo contrário, eles (os alunos) me surpreenderam. Na reunião de pais orientamos que não trouxessem o celular, mas não podemos impedir. O aparelho deve ficar desligado. Não pode usar", afirmou Luciane Martins Rodrigues, vice-diretora da escola, que atende 1.480 estudantes do ensino Fundamental e Médio.
As impressões iniciais têm sido positivas, especialmente durante o intervalo. "Sempre os assisto no recreio, e, nessa semana, eles estavam jogando UNO, lendo livros e brincando, coisas que não faziam. Fiquei muito feliz quando vi uma menina que não falava com ninguém, porque passava o recreio todo jogando sozinha no celular, interagindo com os colegas. Nesta segunda-feira (17), ela já entrou sorrindo", destacou Luciane.
A vice-diretora ainda ressaltou que professores e funcionários também estão proibidos de usar celulares. As atividades que exigem recursos tecnológicos devem ser conduzidas com equipamentos disponíveis na escola. Os televisores situados nos corredores funcionam como murais digitais, exibindo continuamente as novas regras da instituição.
Apesar do promissor início, a vice-diretora informou que a escola conta com uma Professora Orientadora de Convivência (POC), responsável por acompanhar o processo de acolhimento. "Houve a orientação de que os estudantes poderiam apresentar resistência ou abstinência. Aqui, ainda não ocorreu. Uma psicóloga visita a escola a cada 15 dias. Se a POC perceber problemas, a criança será encaminhada para tratamento", explicou.
Com mais de 30 anos de atuação na educação, Luciane acredita que a legislação é essencial. "Acho que a lei está voltada para resgatar as crianças. Muitos deles, após a pandemia, ficaram doentes, isolados, não sabem conversar e interagir. É preciso resgatar o brincar, o conversar e o fazer amigos. A participação da família é fundamental".
Thaís Vieira Cândido, professora de História na EE Olga Cury, também expressou sua surpresa positiva. "Observei, nos primeiros dias, os alunos se comunicando mais. Me chamou a atenção ver alunos mais tímidos com livros físicos e uma aluna do segundo ano com caça-palavras. Isso é muito positivo".
O desafio da abstinência
A restrição do uso de aparelhos celulares não é uma novidade apenas na EE Olga Cury; ela é respaldada por uma lei federal e, em São Paulo, também se apoia em legislação estadual aprovada no final do ano passado. Essa medida é válida para instituições de ensino públicas e privadas, permitindo o uso de aparelhos eletrônicos apenas para fins pedagógicos ou didáticos em sala de aula.
Maria Antonia, professora de Artes em uma escola privada no litoral de São Paulo, acredita que a nova lei é importante, mas reconhece os desafios trazidos a comunidade escolar, como os alunos apresentando crises de abstinência. "Os alunos estão muito viciados em celulares. Já vi aluno pegando o celular do bolso, sem abrir, apenas para tocar e sentir que a 'rede de apoio' está ali. Alguns professores já notaram que alunos estão levando dois aparelhos, um escondido", revelou. Ela observou que, apesar da melhora na convivência dos estudantes durante os intervalos, também há casos de sofrimento.
"É triste ver alunos que eram quietinhos e passavam o tempo no celular agora interagindo mais. Outros, por outro lado, estão sobrecarregados e desesperados por conta do afastamento do celular. Vamos conseguir avaliar os resultados da proibição somente no final do ano", comentou.
Oswaldo Vellardi, professor em escolas públicas e privadas, destacou que a maioria dos alunos aceitou as regras. "Alguns poucos tentaram levar o telefone para usar no banheiro. Mas estão aprendendo a conhecer melhor os colegas e perceber que é possível explorar o mundo fora da 'jaula' do celular", completou.
Vídeos nas redes sociais mostram estudantes comentando a nova rotina. "Eu, como sou viciada no celular, é muito esquisito não ter o celular do lado. Mesmo sem usar, parece que falta algo. Em relação às aulas, achei que consegui focar mais, sem distração das mensagens. Não achei negativo, porque consegui prestar mais atenção", disse uma aluna.
No entanto, houve também vozes críticas. "Essa regra não vai funcionar, sabe por quê? Já estudei em uma escola que tinha essa 'regrinha' e ninguém respeitava. Todo mundo escondia o celular na cintura e mexia no banheiro", afirmou outra estudante.
A diretora pedagógica do Colégio Dante Alighieri, na capital paulista, ressaltou que a restrição do uso do celular já existia antes mesmo das novas legislações. "Desde setembro do ano passado, estamos adotando algumas medidas, como palestras para as famílias e aulas de educação socioemocional", pontuou.
Impactos na saúde mental
A ausência do celular pode provocar sintomas como inquietação, irritabilidade e até isolamento social. O psiquiatra e professor Rondinelli Salvador enfatiza que é fundamental monitorar esses comportamentos e oferecer suporte e recursos de saúde apropriados. "É urgente que famílias e a sociedade protejam crianças e adolescentes do uso excessivo das telas", destacou.
Por fim, Michel Carvalho, doutor em Ciências Humanas, defende campanhas de conscientização sobre os danos do uso excessivo de tecnologia. "A restrição do celular nas escolas deve contar com o apoio total da comunidade escolar. O aprendizado não pode depender do uso de um aparato tecnológico", concluiu.