Estados debatem proibição das armas de gel; quatro cidades já vetaram uso do equipamento

Sucesso entre crianças e adolescentes, artefatos foram proibidos em municípios de Pernambuco

Estados debatem proibição das armas de gel; quatro cidades já vetaram uso do equipamento

Febre entre crianças, adolescentes e jovens adultos, as armas de gel começaram a ser proibidas por municípios brasileiros em dezembro do ano passado, às vésperas do Natal. O cerco às gel blasters, outro nome dado aos artefatos, começou por Pernambuco e, até o momento, quatro cidades do estado proibiram, por lei ou decreto, a venda e distribuição das armas. Projetos de lei no mesmo sentido já foram apresentados nas assembleias legislativas de ao menos sete estados.

O sucesso das armas de gel foi impulsionado por vídeos nas redes sociais nos quais são exibidas batalhas entre dois ou mais grupos. Uma dessas brincadeiras levou o morador de Paulista (PE) Kauê da Silva, de 8 anos, a ser submetido a uma cirurgia no olho no último fim de semana de novembro. No momento que foi atingido, ele estava se divertindo com garotos da idade dele.

— De repente, ele caiu do meu lado, chorando muito, gritando: “Meu olho, meu olho”. Estava todo vermelho de sangue — contou o tio de menino, Rafael Gomes, que estava perto de Kauê. — (Essa brincadeira) infestou as comunidades. Tinha virado um caos, comunidade contra comunidade, gente participando de carro e de moto. Eram batalhas de 30 ou 50 pessoas na rua.

Armas de Gel no Brasil

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Importadas da China e movidas à eletricidade, as armas de gel chegaram ao país no ano passado, e se espalharam primeiro em São Paulo e no Rio de Janeiro. Elas são vendidas em comércios populares, como a Rua Vinte e Cinco de Março, na capital paulista, e nas ruas da Saara, no Centro do Rio, além de serem encontradas em lojas especializadas em paintball e airsoft. Na internet, os preços variam de R$ 78 a R$ 399. A munição das armas são bolinhas de gel, comumente usadas para decorar vasos de plantas.

O Inmetro já informou que as armas de gel não são consideradas brinquedo e se assemelham aos equipamentos de airsoft e paintball, regidos por decreto presidencial e fora da competência do órgão. O uso indevido das gel blasters pode, incluisve, resultar em infrações como lesão corporal e perturbação do sossego.

Projetos de lei para proibi-las já circulam nas assembleias legislativas do Rio, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Alagoas, Paraíba, Sergipe e Pernambuco. Há ainda propostas na Câmara de Vereadores de Florianópolis e de Juiz de Fora (MG). A ausência de uma legislação específica para as armas de gel, no entanto, não impediu autoridades locais de agir em casos nos quais entenderam ocorrer comercialização irregular do produto.

Réplicas de armas de fogo

Na cidade de Volta Redonda (RJ), após uma reunião entre a prefeitura e as forças de segurança em dezembro, as armas de gel passaram a ser entendidas como réplicas de armas de fogo, o que seria uma violação do Estatuto do Desarmamento. Até o momento, o município confiscou 130 gel blasters e 13 sacolas com munição. Após esses primeiros casos, ocorrências com armas de gel cessaram na cidade, segundo a prefeitura.

Justificativa semelhante foi usada em São Paulo para a apreensão de 200 desses artefatos em Marília no início deste mês. Descritos pelas autoridades como equivalentes a simulacros, esses produtos só poderiam ser comercializados com autorização especial, explicou, em nota, a Secretaria de Segurança Pública.

Em Pernambuco, outro motivo impulsionou as apreensões. Em dezembro, uma operação da Polícia Civil confiscou 3.510 armas de gel com origem fiscal ilícita e certificação irregular em cinco lojas do centro do Recife. Além da falta de notas fiscais, os produtos tinham selos falsificados do Inmetro. O órgão não tem competência sobre esses produtos.

O decreto presidencial mencionado pelo Inmetro que rege equipamentos de airsoft e paintball — o de nº 11.615 de 2023 — foi publicado antes da febre das gel blasters e não cita as armas. Também não faz menção a elas uma portaria do Exército de 2010, que regulamenta simulacros e armas de pressão. A Força, porém, já afirmou não considerar as armas de gel simulacros ou réplicas.

Professor de Direito Penal da USP Mauricio Stegemann Dieter avalia que municípios e estados agem de forma coerente com o Estatuto do Desarmamento e atendem a preceitos constitucionais como a proteção e o bem-estar dos menores ao proibirem essas armas.

— O decreto (presidencial) está desatualizado — diz o professor.

Dono da La Catedral, loja especializada em airsoft de Belo Horizonte, o empresário André Barreto argumenta que as armas de gel não apresentam riscos se usadas corretamente, com os devidos equipamentos de proteção e em ambientes adequados.

— As armas de gel vêm com óculos, manual de instrução. O problema não é o brinquedo, mas o usuário. É assim com qualquer esporte. Imagina andar de kart na rua? — compara Barreto. — Com o airsoft e o paintball, a classificação é bem rígida. Tudo está descrito. Esse é um produto novo, que chegou como brinquedo no país e por muito tempo foi tratado como tal. Quando ele caiu no gosto popular e começou a ser usado de forma indevida virou uma questão.

Kauê, o menino citado no começo da reportagem, teve uma hemorragia ocular. Segundo o tio dele, o sobrinho está sendo acompanhado para evitar o desenvolvimento de sequelas. O ferimento aumentou as chances de ele ter catarata no futuro, alertaram os médicos à família.

Equipamento de brinde

O menino havia ganhado a arma de gel quatro dias antes do acidente; um presente do próprio tio. Gomes conta ter recebido o equipamento de brinde, devido ao seu trabalho como influenciador nas redes sociais. Duas semanas após o episódio, no dia 11 de dezembro, a cidade de Paulista sancionou uma lei proibindo a fabricação, a venda e o transporte das gel blasters. Na mesma época, a medida foi adotada também por Caruaru, Olinda e Limoeiro.

A prefeitura de Paulista afirma não ter conhecimento de novas ocorrências envolvendo as armas de gel desde que a lei entrou em vigor. A Fundação Altino Ventura (FAV), especializada em atendimentos oftalmológicos emergenciais no Recife e onde Kauê recebe tratamento, registrou 95 atendimentos desde dezembro. Após a proibição nos municípios, os casos diminuíram.

Oftalmologista da FAV, Camila Moraes conta que a unidade já atendeu pacientes atingidos enquanto iam à padaria; ou que estavam em casa, e a bala entrou pela janela; e até motoristas de aplicativos.

— Temos relatos de pessoas colocando bolinhas de aço na munição ou congelando as bolinhas de gel para doer mais. Deixa de ser uma bala de gel e vira de gelo, bem mais perigosa — alerta a médica, pontuando que as munições podem causar de conjuntivite a inflamações graves, com alguns casos podendo evoluir para descolamento de retina, glaucoma e até cegueira.

Creditos: Paulo Assad — Rio de Janeiro
Fonte: OGlobo.com