Seu Quincas e o rio São Francisco

A história por vezes se autoconstrói, em outras o homem a faz. Seu Quincas é exemplo desta afirmativa.

Seu Quincas e o rio São Francisco

Este artigo, transcrito do Diário de Pernambuco, edição de 17 de março de 1967, revela uma história inusitada, das muitas que teve a oportunidade de viver e contar o Sr. Joaquim Bezerra de Souza. Conhecido por “Seu Quincas”, foi Comandante Prático da Empresa TUPAN (dos empresários Sebastião e Luiz Barreto, com sede em (Neópolis-SE), fazendo a linha Penedo-Piranhas.

Era profundo conhecedor da seção navegável do Baixo São Francisco e portador de extrema habilidade para navegar naquelas águas temerosas: ele sabia a exata localização dos baixios e das pedras, sobretudo destas, tão abundantes no trecho de Entremontes para cima, contornando-as com toda a segurança.

A história por ele contada ao jornalista Selênio Homem de Siqueira, experiente repórter do Diário de Pernambuco, mostra o jovem Quincas ainda um mero ajudante de canoeiro, e seu involuntário encontro com o bando do famigerado cangaceiro Lampião. Vale à pena conhecê-la.

O homem chama-se Joaquim Bezerra de Souza, casado, 53 anos, residente em Pão de Açúcar, Alagoas, cidade atraente e que possui, para orgulho dos seus habitantes, um pãozinho de rocha, com um pequeno Cristo Redentor no ápice. “Mestre Quincas”, como é mais conhecido em todo o baixo São Francisco, exerce o singular ofício de prático de água doce, e jacta de ser o mais competente nas 158 milhas navegáveis da Região. “Mestre Quincas” é o homem que a Marinha contrata, todos os anos, para guiar o navio-patrulha Piraju, na missão de atendimento às populações ribeirinhas.

“Seu Quincas”, em 1967. Via Blog do Etevaldo

Trata-se de extraordinário contador de histórias. Sabe coisas de arrepiar os cabelos e tem o dom de contá-las em ritmo pausado, persuasivo, descendo a minúcias de literatura policial.
Há um caso na vida de Quincas, uma faceta que ele narra com indisfarçável júbilo: de haver transportado o temível Lampião, rio afora, de Angicos à Fazenda Borda da Mata, estância que pertenceu, à época, ao pai do então Governador de Sergipe, Eronides de Carvalho [ii], um velhote de maus bofes que se dava ao risco de “hospedar” o Capitão Virgulino Ferreira, quando maior era o assédio das volantes. A aventura passou-se em águas sergipanas e Quincas conta o “suspense” mais ou menos assim:

Era um dia qualquer do ano de 1936. Ainda muito jovem, trabalhava como ajudante na canoa “Teresa Gois”, do Mestre Moisés Francisco dos Santos [iii], sujeito taciturno, de poucas palavras.

O barco subia o rio e ia buscar um bom frete em um lugarejo distante. Pelo menos foi o que Moisés anunciara a Quincas quando “abriu os panos” em Capoeira [iv], fazenda de sua propriedade. A tarde caia lentamente e entre ambos pairava um silêncio de clausura. Em dado momento, o Mestre rompeu a quietude com sua voz grave:
– Sabe de uma coisa, Quincas, eu não o avisei, mas tenho que apanhar uma “família” em Angicos, na ribanceira, perto da casa de compadre Chico. Joaquim não deu muita importância àquela sentença patronal. Cabia-lhe apenas cumprir as ordens do chefe.
– Tá certo, seu Moisés, tá certo…

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O navio patrulha Piraju no porto de Curralinho-SE. Via Blog do Etevaldo.

O BANDO SURGE

Eram cinco horas da tarde quando Moisés anunciou a mudança do itinerário. Pouco depois, a canoa atracou na ribanceira. Seguiram-se longas horas de espera. Precisamente às 22 horas, Quincas avistou alguns vultos que saiam do mato, em direção ao barco. A “família” se aproximou e o jovem Joaquim sentiu o sangue fugir-lhe das veias. À frente do grupo, caminhava uma figura lendária, terror do sertão. Quincas logo o reconheceu: era Virgulino Ferreira com seus reluzentes enfeites de metal precioso, armado até os dentes. Homens morenos, de cabelos compridos e chapéus vistosos, de abas levantadas, seguiam o Rei do Cangaço.

Os sinistros passageiros tomaram assento na canoa e ficaram imóveis como estátuas de pedra. Lampião acomodou-se junto a Maria Bonita e dirigiu algumas palavras cordiais ao Mestre Moisés (“Maria era baixota, porém, bonita de verdade” – comentou Joaquim). O inexperiente ajudante estava com os nervos em pandarecos. Ficou todo o tempo na proa, fingindo ajeitar o pano, para não passar por entre os cangaceiros, embora estivesse no grupo o Zé Sereno [v], seu amigo de infância.

Aos primeiros raios do sol, a canoa chegou à fazenda Borda da Mata. Mestre Moisés recebeu sua paga e seguiu com destino a Penedo. Esta foi a última viagem de Joaquim Bezerra como ajudante da Teresa Góis.

OUTRAS ESTÓRIAS

Acontece que Mestre Quincas sabe muitas estórias do cangaço, de tanto haver percorrido o Baixo São Francisco, no tempo que Virgulino Ferreira estabeleceu seu domínio de terror nos sertões nordestinos. As cidades à beira d’água eram frequentemente visitadas por Lampião, e Joaquim continuava como ajudante de mestre, rio acima, rio abaixo.
Pouco depois de seu inusitado encontro com os cangaceiros, contou “Mestre Quincas”, a canoa “Rio Branco”, de José Pedro [vi], foi atacada pelo bando, no Morro da Abelha [vii], em Sergipe.

A embarcação seguia para Propriá, levando dois sanfoneiros que iam animar uma festança naquela cidade. Mas, Lampião não estava interessado em festa. Queria ir para a fazenda Saco dos Medeiros [viii], em Alagoas, a fim de cobrar “uma dívida” ao Coronel Gustavo, dono da terra. Virgulino desembarcou para ajustar as contas, e a “Rio Branco” subiu o rio, rumo a Pão de Açúcar.

Um delator de Lampião se encontrava a bordo da canoa. Maria Bonita reconheceu o “sujeito”, mas o Rei do Cangaço estava de bom humor e preferiu não ir à desforra. O infeliz denunciante, ante a terrível descoberta de Maria, ficou imóvel, sem bater pestanas, até o desembarque do bando. Conta-se que, ao chegar a Pão de Açúcar, saiu feito um desvairado, em louca disparada, com uma crise de histerismo.

Essa notícia Joaquim ouviu do cangaceiro “Cajazeira”, que participou do assalto à canoa.

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Canoa Rio Branco, depois Luzitânia. Acervo Canoa de Tolda

O CONHECEDOR DO RIO

Se alguém se dispuser a ouvir as narrativas de Mestre Quincas, terá que ter paciência de Jó. Antes de tudo, porém, Joaquim Bezerra e um prático de água doce. Conhece o Baixo São Francisco como ninguém. Sabe todas as passagens difíceis do rio e tem teoria própria sobre as mutações que se processam anualmente, no seu leito.

Diz que de Penedo à foz do rio, é tranquilo, não oferece perigo algum. “Danado” é o trecho Penedo-Piranhas, que se modifica, na época da cheia, pela ação da correnteza. Por esse motivo, todos os anos, com o rio seco, faz a correção da sua particularíssima carta fluvial.

Hoje, após tantas intempéries, Joaquim Bezerra é um homem tranquilo. Há 13 anos e prático da empresa Tupan, que faz a linha Penedo-Piranhas, transportando passageiros. Resta agora crias os moleques e terminar seus dias na santa paz do Senhor.

NOTA.

JOAQUIM BEZERRA DE SOUZA, conhecido por “Quincas”, nasceu no povoado Curralinho, município de Porto da Folha-SE (atualmente território de Poço Redondo-SE), no dia 18/08/1910. Filho de Teotônio Martins Bezerra e Adelaide Lucas de Souza (casados em 15 de agosto de 1904, em Porto da Folha-SE). Eram seus avós: paternos, Pedro Bezerra e Antônia Rosa Bezerra; maternos, Lucas Evangelista dos Santos e Maria Rosa de Souza. Casado com Maria José Santos, natural de Pão de Açúcar, onde reside seu filho José Bezerra (Zé de Quincas).

Foi Comandante Prático da Empresa Tupan (de Sebastião e Luiz Barreto, com sede em Neópolis-SE), fazendo a linha Penedo-Piranhas desde 7 de julho de 1957 até 1979, quando a empresa encerrou as atividades naquela linha. Faltando-lhe a lancha Tupan, que comandou durante vinte e dois anos, ainda trabalhou na balsa que fazia a travessia Pão de Açúcar-AL/Niterói-SE (povoado pertencente ao município de Porto da Folha), pertencente à Empresa Fluvial Sao Francisco (Zélia Silva Gonçalves).

Faleceu em Pão de Açúcar-AL no dia 25 de agosto de 1999.

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Povoado Curralinho-SE, 1967. Foto: Capitão-de-Mar-e-Guerra Alberto do Valle Rosauro de Almeida

Transcrito do Diário de Pernambuco, 17 de março de 1967.

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Informações adicionais: Wellington Santos, Tonho de Dona, Everaldo Fernandes.

 

Creditos: Blog do Etevaldo