'Danos morais pagos pela Braskem são imorais'

Defensor público Ricardo Melro afirma que acordos firmados do início da responsabilização pelo afundamento do solo em Maceió até então, são nocivos às famílias prejudicadas pela Braskem; vítimas lutam por reparações justas

'Danos morais pagos pela Braskem são imorais'

Escombros, casas sem telhado, destruição, ruas vazias, medo. Esse cenário de guerra é a situação atual de um local onde a vida fervilhava e as pessoas construíam relações. O subsolo que dava sustentabilidade às edificações virou cavernas e a vida desmoronou. Aproximadamente 60 mil pessoas tiveram que deixar seus lares por conta de um fenômeno provocado pela mão do homem.

O caso é o afundamento do solo em cinco bairros de Maceió provocado pela mineração de sal-gema por mais de três décadas pela empresa Braskem. Ele foi iniciado no dia 3 março de 2018 após um evento sísmico de magnitude 2,5 na escala Richter. O tremor foi apenas o estopim para o problema que já vinha ocorrendo há anos sem, contudo, haver relação estabelecida.

Seis anos após o início da crise ambiental, econômica e social instalada nos bairros do Pinheiro, Bebedouro, Mutange, Bom Parto e parte do Farol, muitas famílias e empresários prejudicados ainda lutam por reparação justa.

Com ações distintas movidas na Justiça, a Defensoria Pública do Estado de Alagoas (DP/AL) busca fazer valer o direito dos atingidos, cujo número, para o defensor público Ricardo Melro, vai além dos dados oficiais, que consideram apenas as pessoas que foram realocadas, por seus imóveis estarem dentro da área de risco. Ele estima que, direta e indiretamente, o desastre atingiu mais de 100 mil pessoas. “Se você colocar o raio de um quilômetro do mapa de risco, que é justamente o raio onde as seguradoras se recusam a cobrir os financiamentos dos imóveis, toda essa área perdeu um valor imenso. Casas que valem R$ 400 mil, hoje não valem R$ 200 mil”, diz o defensor.

Em entrevista à Tribuna, o defensor fez um balanço das várias ações impetradas na Justiça pela Defensoria Pública do Estado, em defesa dos moradores dos Flexais e das demais vítimas da Braskem, em Maceió. Entre elas está o pedido de revisão dos danos morais no Processo de Compensação Financeira; de realocação e indenizações dos moradores dos Flexais e adjacências, que sofrem com o isolamento social em decorrência do esvaziamento do bairro; de indenização para os pacientes e funcionários do Hospital Sanatório, que foram retirados às pressas, quando houve o colapso da mina 18; do repasse de R$ 300 milhões ao Fundo de Amparo ao Morador (FAM), prometido pelo prefeito JHC quando a Prefeitura de Maceió celebrou acordo de R$ R$ 1,7 bilhão com a Braskem; dos direitos de todas as famílias que possuem jazigos no antigo Cemitério Santo Antônio, localizado no bairro Bebedouro; e da remissão da área atingida. O órgão busca ainda solicitar indenização por desvalorização imobiliária da área do entorno.

Ricardo Melro avalia que todos os acordos firmados até então, são nocivos às famílias prejudicadas pela mineradora. No entanto, o pior deles,

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 segundo o defensor público, é o acordo por danos morais, que coloca todos no mesmo “balaio”.

“Estamos empenhados e convictos na vitória, pois a nossa causa é justa e necessária, até para evitar que tragédias como essa não se repitam”, afirmou. Nesse sentido, garante o defensor, não faltará empenho da Defensoria para cobrar até a última instância tudo aquilo que as vítimas da Braskem tenham direito. “Não vai faltar empenho e disposição para enfrentar a Braskem e produzir as provas necessárias para vencer todas as ações. E recorrer, se for necessário recorrer, em caso de derrota”, garantiu o defensor público.

Ter fé na vitória, segundo ele, é o primeiro passo para se obter êxito em uma contenda judicial. “Para a gente realmente abraçar uma causa, é preciso acreditar nela, fazer uma avaliação, ponderar e dizer que o direito é bom, é justo. Isso é o que basta para a gente enfrentar o mundo se necessário for”.

Ricardo Melro garante que a Defensoria vai fazer valer o direito dos moradores dos Flexais, comunidade localizada no bairro de Bebedouro que está em isolamento social após a realocação do entorno, e das demais vítimas da Braskem.

“Entramos também com uma outra ação, cobrando na Justiça uma reparação da empresa pelos prejuízos causados à coletividade e estamos preparando uma outra ação que diz respeito ao lucro obtido pela empresa de forma irregular, de maneira criminosa”, explicou o defensor público. “No entanto, as ações mais avançadas são aquelas que pedimos a revisão de todos os danos morais, porque os danos morais que a Braskem pagou foram imorais, se a gente pode falar dessa forma”, completou.

Ação pede revisão da indenização por danos morais

Na opinião do defensor, a Braskem condicionou o pagamento do dano material – que seria o valor da indenização do imóvel a ser desocupado e interditado pela mineradora – à aceitação de R$ 40 mil, que ela tabelou, para todos, como dano moral. “Isso é um absurdo. Esse tabelamento é inconstitucional”, destacou o defensor. Segundo ele, é como se fosse uma “venda casada”. Só tem direito à indenização quem aceitar o dano moral nesse valor, independentemente do tamanho da família, com dois ou 10 integrantes.

“O dano moral pago pela Braskem é para o núcleo familiar, ela não individualizou, o que contraria a legislação, pois o entendimento dos tribunais é outro. Mesmo que um dano atinja o núcleo familiar da mesma forma, na hora de pagar o dano moral, o pagamento precisa ser

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 individualizado, levando em consideração cada integrante da família e suas peculiaridades”, explicou o defensor. “Na hora de pagar, quantificar, a empresa deve individualizar cada um da família para saber como cada um deve receber”.

“Por exemplo, o chefe de família, se é o pai ou a mãe; quem são os filhos, se algum deles desenvolveu um problema de saúde mental ou não desenvolveu. Então tem que analisar de fato tudo, nos mínimos detalhes, para fazer uma reparação justa por dano moral. Estabelecendo, assim, critérios aceitáveis, para que possa produzir uma matriz de dano, uma matriz de indenização, como fez a instituição Cáritas, com a ajuda de duas universidades federais nas tragédias de Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais”, explica Melro.

O defensor público disse ainda que onde há um intervalo de valores é que vão se colocar várias situações que as vítimas podem desenvolver, desde a perda da qualidade de vida, da sua rotina, do meio ambiente, do visual, do meio ambiente cultural, do meio ambiente urbanístico, do paisagístico. “Tudo isso. Até o desenvolvimento de doenças, como aconteceu com alguns moradores que adoeceram, entraram em depressão a até se suicidaram, como temos pesquisas que atestam essas situações”.

No entanto, para Ricardo Melro, “nada disso foi levado em consideração”. A Braskem tabelou em R$ 40 mil o dano moral por família. “A família pode ter oito pessoas ou duas pessoas, vai receber a mesma coisa. Uma grande disparidade. Porque, se você for dividir de forma per capita, a família de duas pessoas vai receber mais do que a família de 8 pessoas. Isso fere o princípio da igualdade, garantido pela Constituição Federal. Ele se aplica, inclusive, na relação entre pessoas privadas, entre particulares. Principalmente diante daquela que tem um certo poder social, poder econômico, que é o caso Braskem”.

Para evitar que essa injustiça seja mantida, no começo de setembro, a DP/AL entrou com uma ação na Justiça Federal contra a Braskem, cobrando uma indenização justa pelos danos morais pagos às vítimas. Reivindicando um valor maior do que os R$ 40 mil que a empresa pagou por dano moral para cada família. Caso a ação tenha êxito, deve beneficiar as 60 mil pessoas afetadas diretamente pela mineração. A revisão de todos os danos morais, segundo estimativas, deve gerar um gasto adicional de R$ 5 bilhões para a Braskem.

Segundo Ricardo Melro, desde 2019, a Defensoria, a exemplo de outros órgãos de defesa da cidadania, vem brigando na Justiça contra a Braskem porque a empresa se nega a assumir os seus erros, a pagar indenizações justas e reparar a contendo os prejuízos causados à coletividade. “Todas essas ações estão em tramitação na Justiça. Algumas já tivemos ganhos parciais. Outras, não. Tivemos que recorrer. Mas nenhuma delas foi concluída, até o momento”, revelou Ricardo Melro.

CASO DOS FLEXAIS

Moradores afetados pelo isolamento social pedem realocação

Outra ação que já está bastante adiantada é a da situação dos moradores das comunidades dos Flexais, das Quebradas e da Rua Marquês de Abrantes, localizadas no bairro de Bebedouro. As comunidades estão fora do mapa de risco, mas foram afetadas indiretamente com o isolamento social, consequência do esvaziamento do entorno por conta do afundamento do solo. A DP/AL defende a realocação desses moradores, com pagamento de indenizações justas e danos morais.

“Foi feito um acordo em que foram mantidas as pessoas lá, sem a possibilidade, sem a alternativa de serem realocadas com as indenizações adequadas, com a promessa de que iriam requalificar o bairro e tentar integrar aquela comunidade de forma viável socialmente à cidade, num prazo de dois anos, mas até agora nada”, destacou o defensor Ricardo Melro.

“Apesar do estudo de um antropólogo do próprio MPF [Ministério Público Federal em Alagoas] apontando que a revitalização não seria a

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 saída mais adequada e que a decisão, inevitavelmente, passaria por uma solução híbrida. Para aquelas pessoas que pretendem sair, que não aguentam mais, que estão adoecendo, pudessem sair, entrando no programa de indenização para serem realocadas. E quem quisesse ficar mesmo morando de forma isolada, que fosse respeitado também esse direito. Mas nada disso, até agora, foi levado em consideração”, relatou Melro.

O defensor disse ainda que os moradores dos Flexais só aceitaram receber uma indenização no valor de R$ 25 mil, por família, porque estavam necessitados. “Quase 80% da população de lá queriam sair. Há pesquisa da própria Braskem nesse sentido, através da empresa Diagonal. Mas a vontade da população foi deixada de lado. E apostaram nesse projeto de requalificação, que acaba agora em outubro. Dois anos para requalificar o bairro, a partir do acordo que foi feito, em outubro de 2022. Dois anos se passaram e não foram feitas as obras prometidas”, criticou.

O defensor destaca que a comunidade está abandonada. “Continua tudo largado, as pessoas estão adoecendo, pedindo pelo amor de Deus para saírem de lá [dos Flexais e Marquês de Abrantes] para irem morar num local que não seja ilhado, para que eles mantenham uma vida em comunidade. Porque lá não existe. Quem conhece a comunidade, quem trafega, caminha lá, sabe que não tem. E nós estamos nesse processo. O juiz a princípio deu uma condenação, reforçou o valor da indenização. Pasmem, a indenização prevista no acordo que fizeram foi de R$ 25 mil por família. As pessoas necessitadas, obviamente, pegaram. E fazem [a mineradora] uma propaganda disso como se fosse algo positivo: mais de 90% aceitaram. Aceitaram porque estão desesperados”, salienta o defensor.

“Vá lá falar com um rapaz que tem um pequeno comércio, que vende churros, que tem uma merceariazinha, vá perguntar a ele como é que está a situação. Ele está passando necessidade. E pegaria se fosse R$ 5 mil, quanto mais R$ 25 mil. Isso é pouco. Essas pessoas estão em dano, em situação de dano desde 2020, 2021. É pior, eu digo, do que os que tiveram que sair para outro local, porque aqueles estavam em uma situação de dano, mas receberam as indenizações e conseguiram comprar um imóvel de alguma forma em um local adequado. E eles que estão ali isolados, ali sem nada. Até o transporte de aplicativo não chega lá. É muito complicado”, continua em tom de desabafo.

Segundo ele, o entendimento do juiz federal André Granja de reforçar a indenização foi muito bom, mas o valor que ele indicou como reforço não satisfaz na plenitude o que pede a ação. “Por isso, a Defensoria recorreu. E vamos esperar que o Tribunal Regional Federal da 5ª região, que fica em Recife, julgue”.

Ricardo Melro explica que, ao mesmo tempo, o processo foi desmembrado. A parte indenizatória foi julgada e criaram-se autos processuais para a parte da realocação, que é a indenização em referência aos danos materiais que aquela comunidade tem sofrido. Nele, constam oito relatórios. Entre eles, o relatório do antropólogo do MPF, o do antropólogo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Ufal, o do Conselho Nacional de Direitos Humanos, o da CPI da Braskem no Senado Federal e da Comissão de Direitos Humanos da OAB. Conforme o defensor, todos apontam para a realocação.

“Então temos oito relatórios no processo. E todos os institutos independentes vão para uma só direção, que aquela população tem o direito de ser realocada com a justa indenização. Mas o juiz entendeu que poderia fazer mais uma perícia. Mais uma perícia de um antropólogo, sociólogo, não sei. E desmembrou o processo, mandou para o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] indicar. O CNJ indicou, mas o valor da perícia é alto, a Justiça Federal não paga o valor dos honorários desses peritos e a Defensoria Pública não tem interesse em ouvir, porque nós já sabemos, entendemos que o processo está transbordando de provas para julgar procedente em todos os sentidos, seja pela vontade da população, seja pela comprovação técnica, sociológica ou antropológica, que é inviável fazer qualquer outra coisa que não seja a realocação. E nós entendemos que não, que esse laudo não é necessário, que não precisa fazer mais nada”, enfatiza Ricardo Melro.

Presidente da Associação dos Empreendedores e Vítimas da Mineração em Maceió e integrante do MUVB, Alexandre Sampaio também falou sobre a decisão da Justiça em realizar nova perícia. Escute no áudio abaixo clicando no Link que segue:

https://soundcloud.com/

O defensor público Ricardo Melro disse ainda que o juiz abriu o prazo para as partes indicarem as provas. “A Braskem tentando protelar, está pedindo a suspensão do processo, até o dia em que ela acabe com todas as obras com a Prefeitura para requalificar. Ou seja, eram 24 meses e, de repente, isso pode virar 36, 48, 60 meses e a população vai ficando lá. Então eu digo sempre, olha, para quem está na segurança e no conforto de seus lares da área nobre, na zona nobre da cidade, é muito fácil prorrogar. Mas para quem está lá naquele inferno, com a pele em jogo, na insegurança, na incerteza, no vazio que se tornou aquilo, que ali ficou um lugar rodeado de escombros e de medo, não é uma bobagem”.

“Essa população dos Flexais [calculada em 3 mil pessoas] não pode ser tratada como um detalhe nesse problema, pelo contrário, eles são os verdadeiros detentores do direito e precisam ser levados em consideração de suas vontades no que é melhor para a vida deles. Não é porque são pessoas humildes que não sabem o que é melhor para vida deles, pelo contrário. Quem está com a pele em jogo, morando lá é quem sabe o que está passando. E assim nos manifestamos. Esperamos agora que o juiz, doutor André Granja, analise e julgue o processo, porque ele já tem um ano e sete meses. Os desmembramentos já vão com mais de sete meses para fazer mais um estudo. E nós entendemos que é desnecessário, porque o processo já está transbordando de provas”, concluiu.

Creditos: Ricardo Rodrigues e Valdirene Leão: Repórteres / Bruno Martins: Revisão / Edilson Omena: Foto | Redação