NYT publica vídeo e artigo em defesa da legalização do aborto no Brasil
26/09/2023, 10:49:07Quando a Suprema Corte dos EUA derrubou o caso "Roe vs. Wade" no verão passado, as leis estatais anti-aborto entraram em vigor imediatamente, as clínicas fecharam no mesmo dia e as pessoas procuraram desesperadamente cuidados de saúde contra o relógio da gravidez. Isto é, há uma urgência para a injustiça, por mais que o momento da justiça seja sempre agora.
Essas lições estão sendo testadas no Brasil. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal do Brasil abriu a votação de um caso para descriminalizar o aborto nas primeiras 12 semanas de gravidez. Esta seria uma mudança radical no país (veja vídeo aqui). Hoje o Brasil proíbe o aborto, com apenas pequenas exceções em casos de estupro, risco de vida e uma condição fetal fatal conhecida como anencefalia.
O julgamento está muito atrasado. Conhecida como ADPF 442, a ação foi ajuizada em 2017 e pede ao tribunal que declare a inconstitucionalidade da lei penal sobre o aborto e acabe com a proibição quase total do ato.
Na sexta-feira passada , a ministra do STF, Rosa Weber, deu o primeiro voto para descriminalizar o aborto. O ministro Luís Roberto Barroso, poderá garantir que a votação prossiga sem demora. As mulheres brasileiras não podem esperar mais pela igualdade e justiça que a Constituição lhes promete. O tribunal deve votar, e deve fazê-lo o mais rápido possível.
Quando apresentado, este caso foi provavelmente o primeiro a pedir a um tribunal latino-americano que descriminalizasse o aborto. Desde então, outros tribunais da região atuaram. O que começou como uma tentativa de apoio às reformas legislativas e ao poder do Congresso para descriminalizar o aborto transformou-se na chamada "onda verde", um movimento político pelos direitos ao aborto. Os tribunais começaram a emitir acórdãos sobre o acesso ao aborto como uma questão de direitos fundamentais e como parte do quadro constitucional das nações, desafiando, em vez de aceitar, o uso do direito penal na regulamentação do aborto. Em alguns países, a descriminalização como um imperativo constitucional logo seguiu adiante.
Em 2021, a Suprema Corte do México declarou inconstitucionais as disposições sobre aborto em um código penal estadual e dois anos depois declarou o mesmo no código federal. Em 2022, o Tribunal Constitucional da Colômbia emitiu uma decisão abrangente que descriminalizou o aborto até às 24 semanas de gravidez. Estes são julgamentos baseados em princípios que permitem o aborto mediante simples pedido de uma pessoa necessitada. Removem autorizações para cuidados que estavam associados a questões de saúde ou sociais e que eram frequentemente utilizados de forma abusiva para atrasar e negar cuidados. São julgamentos em sintonia com os fatos cotidianos dos direitos fundamentais e enraizados nas mais fortes evidências de saúde pública.
A Organização Mundial da Saúde recomenda a descriminalização do aborto para salvar vidas e proteger a saúde e o bem-estar. A evidência é incontestável. As mulheres sofrem e morrem sob estas leis. O aborto sempre carregará esta ameaça até que possa ser praticado sem sanção legal.
Isto ocorre porque a criminalização nega mais do que o acesso a um único serviço de saúde; acarreta danos sociais mais amplos. Gera medo entre aqueles que precisam de cuidados e entre aqueles que poderiam fornecê-los, um destino cruel para as mulheres mais vulneráveis, denunciadas por aqueles que professam cuidar e prejudicadas num sistema que pretende ajudar. No Brasil, a criminalização do aborto trai a promessa constitucional de assistência universal. As pessoas que desistem ou são abandonadas pelo sistema de saúde pública do país devem procurar desesperadamente cuidados fora dele. Enfrentam fardos extraordinários – fardos aos quais algumas não sobrevivem.
Pela punição que inflige e pelo secretismo e vergonha que impõe, a criminalização separa as pessoas das suas redes de apoio, rompe os seus laços sociais e convida a todo o tipo de indignidade e perda para as suas vidas. Aprofunda as desigualdades raciais, de classe e de gênero na vida social. No Brasil, mulheres negras e pardas, mulheres pobres e jovens e mulheres das regiões mais vulneráveis do país têm maior probabilidade de fazer abortos, de serem presas por fazê-los e de morrerem por causa dos procedimentos. Estas são as mulheres enterradas nas estatísticas sobre o aborto inseguro no país.
Há também as mulheres que sobrevivem sob a dor da gravidez forçada. Elas trabalham e dão à luz após um diagnóstico fetal, apenas para ver seus filhos sofrerem ou morrerem. Outras ficam de luto por um futuro livre de violência; um futuro de segurança econômica; um futuro de uma família com nutrição, vestimentas e moradia; ou um futuro de qualquer plano de vida que elas tenham elaborado.
Essa é a evidência para a descriminalização do aborto em termos vivos. Os juízes dissidentes da Suprema Corte dos EUA imploraram aos seus colegas que não se afastassem dela ao acabar com o direito constitucional ao aborto. Os tribunais da Colômbia e do México se basearam nela para encontrar direitos ao aborto nos preceitos mais fundamentais das suas Constituições: vida e saúde, liberdade da violência, igualdade e dignidade humana.
Anos atrás, esses conceitos foram apresentados ao Supremo Tribunal Federal do Brasil em uma audiência pública sobre aborto, o envolvimento público mais significativo sobre o tema em uma instituição estatal. Hoje, esta evidência faz da vida das mulheres o fardo premente do julgamento do tribunal.
Todos os anos, centenas de milhares de mulheres abortam no Brasil. O aborto é uma experiência cotidiana porque é um ato pelo qual as pessoas cuidam de si mesmas e dos outros. Como tal, a sua proteção como direito constitucional torna-se um ato pelo qual cuidamos das mulheres na nossa esfera mais pública, um tribunal de justiça.
A criminalização do aborto exige que todos os votos sejam dados contra ela. Não há mais nada para se analisar, não há mais evidências para invocar; apenas aguarda um futuro constitucional para as mulheres do Brasil e seus direitos fundamentais. A hora para o julgamento é agora.